"Poema Infinito (556): Quando tudo arde" - João Madureira (ex-aluno do Liceu de Chaves)

 

Poema Infinito (556):  Quando tudo arde

 

 

O dia parece não ter ar. Daí a sensação de afogamento. Os alicerces do desespero são muito sólidos. Os meus olhos são como lentes de aumentar fixando os grãos de areia da nossa dimensão humana. Vamos passar a clareira. A lógica das coisas é inexorável. Umas vezes são as bombas contra a moralidade. Outras vezes é a moralidade contra as bombas. Os sábios antigos acreditavam que registar hinos e histórias sagradas acaba sempre por diminuir o sentimento religioso. Nada existe de mais mágico do que uma narrativa, um poema ou uma oração religiosa a agir na mente, através da eficácia da voz humana convocando a memória pelas palavras da verdade. Há 13,7 mil milhões de anos, o Universo estava num estágio de densidade infinita, com toda a massa contida num ponto com um diâmetro de zero. De repente desapareceu toda a cor do céu. As aves noturnas elevaram-se e mergulharam porque o ar cheirava a chuva. De repente sentimos que nos estamos a extinguir. Oiço desde aqui o som da chuva nos telhados de colmo, o vento nas árvores e os monges cantando no mosteiro próximo. Dentro de casa a luz ficou tão verde como se estivéssemos mergulhados dentro da água de um poço e de repente abríssemos os olhos. Os loucos vestem-se de espaço. Apesar dos rios subirem e descerem, há sempre uma travessia para fazer a quem quer trilhar o seu caminho. A superfície prateada do rio lento reflete a luz do sol. Tenho o rio só para mim. Os autênticos viajantes cheiram as cidades antes de as verem. Parecia sempre inverno no meu tempo de escola. Todas as coisas florescem por si próprias. As coisas triviais podem desencadear grandes catástrofes. Tudo parece possível quando as folhas novas abrem. Caos, na boa tradição chinesa, tanto quer dizer céu como criação. Tudo é uma parte do sempre. Olho para a velha casa com os olhos marejados de lágrimas. A madrugada é fria. Logo que o sol se ergue sobre as casas, a neblina começa a dissipar-se. Apesar de o espetáculo ser maravilhoso, sou arrasado pela solidão. Visito então os meus altares da chuva. Por vezes, são eles que me veem sorrir. Daqui oiço os gritos dos pássaros esfomeados nos pomares e os gritos das mulheres e das crianças que os afugentam. Os homens preferem atirar-lhe pedras. Por vezes oiço vozes, mas não consigo perceber o que estão a tentar dizer-me. Os objetos agora são negros. Como buracos. Do interior de um buraco negro, a luz já não consegue sair. Depois é o vazio total. A previsão dos físicos tem de estar errada. Os núcleos dos átomos, quando chegam ao mundo quântico, tornam-se manchas, pois a sua expansão altera a dimensão. A árvore da minha sombra fica num jardim público que pouca gente frequenta. Dali vejo a madrugada subir. A sua luz é intraduzível. Vivo aqui de vez em quando. Tento fingir que tudo está como dantes, apesar de nada estar como devia. Até a parva da nostalgia tem dificuldade em encolher para o seu tamanho normal. A casa ficou silenciosa e oca. Os sonhos adquiriram o aroma amargo da perda. Não tenho nada para dar. O amor não é um ato solitário. É difícil suportar o tédio e a solidão. Os solitários despojam-se de tudo aquilo que consideram acessório. A sensação é agora a do tempo finito a tender para o infinito. As portas batem com força por causa do vento e do abandono. A verdade é que tudo arde, até o sangue.


João Madureira (ex-aluno do Liceu de Chaves)

 

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